quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

BABY I NEED YOUR LOVING

Artigo publicado na Revista Bem Viver nº 14, Ribeirão Preto, Ed. N. Case Comunicação, dezembro de 2012


Não sei onde você está nem quem você é, mas, por favor, venha logo.  
Não se conforme como as coisas são porque eu não me conformo como as coisas estão.
 Sou leal, sincero, divertido, trabalhador, honesto, romântico à moda antiga. Meigo, alegre e fiel. Sou generoso, cúmplice e parceiro. Extrovertido, bem humorado, resolvido. Sou do bem. Amo a natureza e os animais. Detesto mentiras e tenho precisão de ser carinhoso todos os dias.  
Pode chegar que a casa está arrumada, mas se você quiser mudar tudo eu vou gostar.  Tem chinelo, toalha e escova de dentes à sua disposição no banheiro, aliás, tenho cama, mesa e banho, é só desempacotar. E não se preocupe porque sei cozinhar, meu macarrão é sempre al dente. Na geladeira tem água de coco, salada de frutas e uma garrafa de vinho. E como vinho não se bebe solitariamente... espero você. Ah! Tem também chocolates. Tenho botões em todas as camisas e seu lado na cama já está preservado. Se a questão for o guarda-roupa, fica uma parte para as minhas coisas e duas partes para você.
Você vai gostar de saber que diminuí minha paixão pelo futebol nos fins de semana, então proponho passeios, teatro, cinema e um bom DVD com pipoca no caso de dias chuvosos. Férias também são obrigatórias e garanto que não esquecerei nenhuma data importante. Trazer trabalho para casa é certo que está fora dos planos. Sem problemas você me chamar a hora que for para trocar lâmpada ou qualquer outro conserto. Também não tenho tanta necessidade do carro assim, ele pode ficar o tempo todo com você.
Eu queria que fosse surpresa, mas não resisto e vou lhe contar: estou aprendendo a dançar tango e desde já quero convidá-la para el día que me quieras... la rosa que engalana...
Faz tempo que aqui não entra um maço de flores, mas já encomendei ambrósias e camélias vermelhas. Também já mandei fazer cópias das chaves e também já tratei com a diarista que prometeu vir dia sim, dia não. Também os vizinhos já estão preparando as boas vindas.  E também já providenciei o plano de saúde... que é para você ficar para sempre! 
Acredite, minha paixão será definitiva e no dia-a-dia não viveremos a mesmice, nem a rotina tomará conta de nossas vidas. Não quero repetir-me com você, a vontade é surpreendê-la a cada instante.
É que estou desacorçoado de sentar sozinho à mesa, perambular pela casa sem saber no que me concentrar. Se tento ler, não alcanço duas folhas. Cansei de só conversar com a tv ou com a net. E o telefone custa a tocar; quando chama é engano. Estou engordando, relaxando comigo, executando as mesmas coisas, deixando de fazer o importante.
Por isso, por favor, venha depressa.
Porque ainda há dentro de mim muito encantamento e quero que você seja a destinatária de todo afeto que ainda me resta.





sábado, 12 de maio de 2012

Mamma son tanto felice...


Texto publicado na revista BEM VIVER, nº 13, maio de 2012, Ribeirão Preto.



porque estou grávido de você! Disse isso num impulso, quase sem pensar e quase ao mesmo tempo do último suspiro da mãe. Era a última cena daquele derradeiro ato. E sem qualquer contenção de lágrimas, sentou-se aos pés da cama e olhou fixamente o rosto da mamma – belo! solar! – já se distanciando da vida terrena. A correntinha com a efígie de um oroboro na medalha, que Ela usara a vida toda, Ele agora colocava em seu pescoço e se despedia.


          A dor já o vinha rasgando por dentro fazia tempo. Pressentia tempestades dentro de si quando a mãe o olhasse pela última vez, esperava o estilhaçamento do coração... mas nada disso acontecia. Só lágrimas. Por mais que se esforçasse para sofrer Ele não sofria. Por mais que quisesse ser dilacerado, não conseguia. Envolto em silêncio absurdo, soava dentro dEle, o Requiem de Mozart. Era um mistério aquilo que estava sentindo. Sabia muito da vida, mas quase nada sobre a morte. Desmoronava e, no entanto, sentia leveza. Era como se aquela situação desse a Ele a certeza de que a morte tinha suavidade... E tem! Uma pureza como um conto de fadas, onde a recompensa é sempre maior que a dor e o castigo.


          Sobre aquela mulher não havia voz discordante. Aquela guerreira – generosa e serena – sempre carregada de muita bondade humana alcançara grau máximo de sabedoria. Soube como poucas administrar seus universos: o da racionalidade e o da afetividade. E, sobretudo, como ninguém, soube ensinar. Esse era o legado da mamma. E como capitalizar essa grandeza se não se engravidar de toda aura materna? Esse foi o insight. Ao dizer as últimas palavras firmava o pacto de garantir a manutenção de um pouco mais de dignidade sobre a terra


          Como um relâmpago veio-lhe ao pensamento o que a mãe já não podia escutar, queria ter gritado: escolhi você, decidi ser seu filho por tudo isso que você deixa... Não blasfemava. Se vista de fora talvez a cena revelasse uma pintura, uma concepção ousada e invertida de pietá.


          Seu tempo aos pés da cama estava acabando. Em prece, bem baixinho, disse um Drummond: o pássaro é livre na prisão do ar. O espírito é livre na prisão do corpo. Mas livre, bem livre é mesmo estar morto. Depois, como que ungindo, acariciou a face da mamma e como um príncipe encantado segurou-lhe a mão, deu-lhe um beijo na testa e saiu para ficar sozinho. Foi para o jardim e pegou um figo no pé, era tempo della befana, uma das tradições que a mãe fazia questão de cultuar. Depois acendeu um cigarro, depois um segundo e mais outro... Não por acaso, como há muito não se via, no céu daquela noite, Júpiter mostrava-se mais iluminado.


          Claro que Ele não dormiu! E quando o sol já aparecia naquela parte do mundo. Ele – que sempre foi do bem – enxugou a última lágrima e começou a ir embora. E pelo andar já era possível reconhecer que ali estava um homem acrescentado.









domingo, 15 de abril de 2012

Che dar più vi poss’io? Monteverdi livro V


Texto publicado na revista BEM VIVER, nº 10, publicação quadrimestral da Construtora Pereira Alvim de Ribeirão Preto.



O verde multifacetado, já esmaecendo, domina a extensão que os olhos alcançam, num cenário que empurra o outono para longe e anuncia a rigidez do inverno. Já é possível ver a neve começando tingir o cume das montanhas. Apenas as retinas, o coração e alma piena podem guardar a visão através da janela do trem. A vontade é descer e dançar ao redor das oliveiras selvagens... mas seria uma dança curta porque as árvores logo estarão desnudas. A vida começará a hibernar para elas.

O trem está chegando ao seu destino. Só se conhece Roma se se deixar levar pelos ventos – frenéticos, voluntariosos, sem qualquer direção prévia! Quantas e tantas vezes se estiver aqui, tantas e quantas serão necessárias para desvendá-la, porque a cidade é definitiva! Imperativa! Incredibile! O presente refaz o passado a todo o momento. Tempos recorrentes. A existência fica sempre mais grávida de paixão

            Desta vez estou determinado ao Aventino, tentado a buscar algum vestígio da passagem de Flória Emília e Aurélio Agostinho por lá. Tenho minhas suspeitas acerca de Vita Brevis, a suposta carta dela para ele. Mas sobre a paixão deles não tenho dúvidas. E isso me inspira a investigar, parar em cada canto da colina. Espiar por entre cada porta.

            Fiz isso todo o tempo... e nenhum fio de cabelo sequer nem de um nem de outro; nenhum indício de Aurel e Flória. Nenhuma pegada dos amantes.

Mas a jornada pelo Aventino não ficaria impune. Fui para a Piazza dei Cavalieri di Malta, direto para a casa 3. Na porta da casa, acima da fechadura há um furo arquitetonicamente construído. Gosto de olhar através dele, a visão que se tem é alguma coisa elevada. Dizem que aquela construção é projeto de.Michelangelo. É possível. Através daquele buraco vê-se uma alameda arborizada e... bem, é melhor não estragar a surpresa.

Deixo o Aventino porque tenho pouco tempo até o Termini.    No caminho a Basílica de Santa Prassede. Quero passar depressa, mas não consigo. Através da porta entreaberta ouço sí, ch`io vorrei morire... ch`io vorrei morire. Arrisco entrar com cuidado e reconheço um coro madrigalista entoando Monteverdi. Alguma coisa curiosa nisso tudo: os versos de Maurizio Moro la bella bocca del mio amato core são lascivos, licenciosos ahi, car'e dolce língua datemi tant'humore... o profano de Monteverdi também conquistou a igreja? Mas isso é o que menos importa naquele momento só quero ouvir ahi, bocca ahi! baci ahi! lingua! Ando, quase sem ser percebido, para traz de uma majestosa coluna e fico imóvel porque é impossível deixar de viver isso ahi, lingua torn'a dire si, ch'io vorrei morire.

Aquele som provoca uma espécie de ressonância afetiva. O coro agora ensaia sfogava con le stelle un infermo d'amore.  Apenas o corpo permanece parado, os sentidos, mais aguçados, movem-se em todas as direções. Fico intrigado porque a coluna a minha frente não acompanha a riqueza de detalhes e significados de toda a igreja. Há a pintura de um busto, sem nenhum acento cristão, que destoa de tudo: do arco do período carolingeo, dos mosaicos coloridos, dos dourados e cores vivas de todas as outras representações.

Com che dar più vi poss’io? os madrigalistas terminam o ensaio e não há mais trem para eu voltar para casa. Mas isso não é importante, tenho cerca de quatro horas até o primeiro da madrugada, para gravar definitivamente dentro de mim, toda ventura do dia.

            Em tempo: a pintura na coluna, o busto que me deixou intrigado, era uma espécie de assinatura, simplesmente o auto-retrato de Caravaggio.




Menor que meu sonho, não posso ser. Lindolf Bell


Texto publicado na revista BEM VIVER, nº  9, publicação quadrimestral da Construtora Pereira Alvim de Ribeirão Preto.



Uma velha e sempre providencial história.

           

Um estava na esquina, encostado à parede. Encolhido e quieto, sem nada para ser notado. Era Um comum. O Outro andava pela calçada. Vinha em paz. Com uma moeda na mão, buscava alguém que a merecesse: sua boa ação daquele dia. Com ela, Outro sabia que qualquer Um, poderia ter alimento, teto, boa saúde, crescer, tornar-se letrado, enfim...  usufruir do  melhor das coisas.  Quando Outro viu Um, parou radiante e estendeu-lhe a moeda. Perfeito! Completava sua benemerência. Entronizava-se nos benefícios dos céus!

Um agradeceu a generosidade, mas não estendeu a mão para a moeda. Não aceitava a oferta. “Não?!” O Outro estranhou: “um miserável não aceitar!?” Talvez ruídos na comunicação... e insistiu na oferta. Um disse que se o Outro quisesse dar-lhe alguma coisa, que lhe desse ouvidos por sete minutos: “apenas sete! só sete!” Desse, e Um estaria recompensado. Teria recebido o donativo. “Está bem!” O outro concordava. “Mas... porque sete?”

Com paciencia secular, principiou falando dos sete... pecados capitais! E falou muito sobre eles!  Bastante mesmo! Depois disse das sete idades do homem, dos sete planos da evolução, das sete virtudes humanas. “O sete – enfatizava – traz a idéia de totalidade, do completo!”

Argumentando acerca do sete na história, astronomia, teosofia, esoterismo, filosofia, física, e outros conhecimentos,  Um  passeava por todas as ciências, crendices e sabedoria popular, tirando o véu do número da perfeição. Assim, as sete rondas planetárias e as sete raças-raiz foram sendo vislumbradas, da mesma forma que os sete elementais, as sete divindades que regem a natureza.  O significado do  sete ia sendo disseminado ao vento... Estacionados em pé, ali na calçada, Um e Outro permaneceram dias e dias numa interminável  interlocução. Um delírio, navegando entre o céu e o centro da terra, com gostoso gosto de mel. Depois de quase terem penetrados no insondável, Um perguntou ao Outro: “tenho agora os sete minutos de sua atenção?” O Outro disse sim apenas com o cintilar dos olhos. Então Um falou:  “para ser grande, sê inteiro. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim como em cada lago, a lua toda brilha, porque alta vive.” Dito isso, arrematou: “menor que meu sonho, não posso ser”, um micro poema de seu amigo poeta. Cravados sete minutos, sem necessidade de conferir o relógio, Um não abriu mais a boca, porque nada mais precisava ser dito. Acenou grato pelo tempo concedido,  e assim foi se despedindo do Outro. Atravessou a rua, procurou o melhor jeito de ficar exposto ao sol e pôs-se a espera.

Ainda com coisas intrincadas mexendo por dentro, o Outro que tentava compreender melhor aquele encontro, viu que não demorou nada para Outra pessoa – agora com duas moedas, uma em cada mão – surgisse e se dirigisse ao Um. A Outra aproximou-se  de Um, e... o mesmo ritual! 

O Outro, repentinamente sobressaltado, abandonou o caminho que deveria ir em frente e deu meia volta. Correu o mais rápido que pode para chegar em casa. Agia como alguém que não poderia perder mais tempo. Vasculhou por todos os cantos até encontrar o “empoeirado” Fernando Pessoa. E logo que pegou o poeta, mergulhou no próprio. Não demorou muito gritou agoniado, como se tivesse em transe: “EU! DEVORANDO POESIA!?”

Pensou que estivesse doente, delirando. Mas não estava não. É que Um tinha engravidado Outro. Pressentindo isso, voltou aos poemas.