Artigos sobre Futebol e Arte. Copa de 2006

Sociedade de Poetas Mortos”.
Artigo não publicado.
     Apagam-se as luzes da Copa 2006. Daqui algumas horas saberemos quem reinara no topo do futebol mundial pelos próximos quatro anos. Mas antes do apito final há tempo para mais uma viagem, desta vez nas águas do realismo fantástico.
     Tarde de domingo. No estádio 49.317 pagantes. Clássico tradicional e de muita rivalidade. Em cima da hora de começar o jogo, nada! Nenhum dos atores adentrou ao gramado, só coadjuvantes. Nem sinal dos times. Pelo menos a arbitragem! Ninguém. As arquibancadas mostram sinais de impaciência. Um ventinho esquisito corre os quatro cantos do estádio. Meia hora de atraso e a irritação descontrola as arquibancadas. Gritos e assobios de protesto. Burburinho nervoso e agitado. Torcedores começam a se aproximar do alambrado. Conversam, dialogam. Estranheza. Crueldade deixar as torcidas sem explicação. Aficionados dos dois times, uns poucos, são autorizados a entrar no campo. A idéia é verificar nos vestiários o que acontece. Alguns ainda na boca do túnel como último apelo, gritam pelos craques. Nenhuma resposta. Desaparecem por minutos indo atrás das respectivas agremiações. O estádio em tom de espera não sabe o que pensar. Quando os que foram atrás retornam, pelo andar da carruagem, percebe-se que time mesmo que é bom, nenhum. Como seria difícil as torcidas acreditarem na evaporação dos atletas, os que foram investigar os vestiários trouxeram os uniformes para provar que os mesmos estavam ocos. Não havia vivalma nos bastidores do campo. Perplexidade total. Um minuto de silêncio. Olhares incrédulos. Cada um perguntando a si mesmo: que raio de absurdo era aquele? Diante do mistério, ninguém sabia o que fazer. De repente uma rápida confabulação dos torcedores no centro do gramado traz agitação. Os que confabularam curiosamente começam a vestir os uniformes dos times e se posicionam no campo. Tinham acabado de decidir sobre um racha. O momento era de muita euforia entre eles. Rapidamente se organizam, mais ou menos 30 de cada lado. Gordo, alto, velho, magro, baixo, jovem, homem e mulher, todos queriam estar na pele do time. A idéia do racha conquista o estádio que aplaude. Muitos dos que estavam nas arquibancadas também fazem suas escalações, afinal envergar a camisa do clube do coração, sem ser na guerra de torcidas, sempre foi um sonho. E aquilo era muito diferente de uma pelada na várzea com fardamento idêntico. Era jogo oficial, um clássico! Merecia ser jogado por todos. A solução negociada foi 3-vira-6-acaba. Pronto, todos poderiam participar. Claro, quem quisesse. Jogaram 23 contra 23, 31 contra 31, 44 contra 44... até todos serem contemplados. Tudo na mais perfeita ordem e disciplina de federação. Muitos não conseguiram aproximação com a bola, mas isso não incomodava nada. O simples fato de vestir a camisa que o ídolo veste, valia mais do que ter metido o pé na bola. A tarde de domingo ganhava ares majestáticos. A sensação de que as horas não escoavam, fazia com que o prazer da vida fosse mais denso e colocava o mundo gostosamente de cabeça para baixo. Não há a menor duvida de que aquele se tornaria o maior clássico da historia dos dois clubes.
     Se um dia algo assim semelhante acontecesse, seria uma justa homenagem ao destinatário principal do esporte bretão, aquele que de fato tinge seu coração com as cores do time, quem realmente sofre ou se emociona com o futebol clube - o fiel torcedor. Nunca é demais lembrar que futebol não se equaciona apenas através do binômio jogador/bola, futebol é tríade - jogador/bola/torcedor. Sem o terceiro elemento pode haver jogo, mas certamente não haverá paixão.

“Terra em Transe”.
Artigo não publicado
     Quando partimos para ver um futebol: a) já sabemos quase tudo o que pode acontecer com aquela forma esférica de couro ou material adequado, circunferência entre 68cm e 70cm, peso entre 410g e 450g, pressão a 0,6 - 1,1 atmosferas ao nível do mar, rolando em cerca de 8.250m2, de grama Batatais, Esmeralda ou São Carlos, durante o tempo de 90 minutos; b) conhecemos as 17 regras, os participantes e suas ambições; c) estamos seguros de que vários quilômetros serão percorridos entre tapas e beijos, gritos e sussurros, socos e pontapés, trancos e barrancos e d) temos certeza absoluta de que não haverá quarta opção, ou ganha fulano, ou ganha sicrano, ou há empate. Se tudo isso é rigorosamente certo, se é definitivo, então a questão é: qual o mistério que nos atrai para ver a mesmice? O que será que há no futebol-previsível que carrega fascínio?
     Claro que é provocação dizer que futebol é sempre o mesmo. Deixando de lado tática e técnica, qualquer pessoa mais ou menos aficcionada dissertaria acerca da imprevisibilidade dessa arte, desnudando a “alma” do futebol dando nomes à estranha atração que ele exerce nas nossas dobras internas. Falaria também acerca das suas funções redentora, terapêutica... enfim, sobre as funções todas que esse esporte poderia provocar nas pessoas. Ver futebol com olhos diferenciados derruba a possibilidade da previsibilidade.
     Uma curiosa atração como essa certamente tem endereço nos domínios do insondável. E pensando de A a Z, só pode ser classificada no P de paixão insuspeita. Nesse verbete os exemplos são poucos, um deles é pelo circo, pelo seu encanto e sedução permanentes. Juntando as pontas, ver futebol como função circense é ver multifacetado, é ver através de vários tons e nuances e mesmo mantendo as ações previsíveis, a visão torna-se desconcertante e intrigantemente nova! Ver futebol assim é ver um circo de cabeça para baixo, onde a “mutação do sete” pisa a lona verde invertida e com apenas uma única bola, desperta pensamentos oníricos. Sete é poder criador, perfeição, sagrado. Mutação do sete brinca de mágico, malabarista, equilibrista, mostrando truques, danças, voleios. Reúne dois em um, de um meio, se torna um todo. Não há distinção. A intersecção dos "sete" está naquilo que é impossível definir, porque se tentássemos perderia a essência. Alguém disse que eles são grandes e fazem de conta que não sentem medo. Mutação do sete é contraponto palhaço/jogador. Identidade única: palhaço/jogador é personagem completa que enriquece qualquer universo ficcional. Para ele tudo é possível na sua arena. Ao jogador/palhaço é permitido ser contraditório, sem que isso seja sinal de fraqueza moral. O palhaço/jogador sustenta uma mentira, sem que isso seja ruim, porque a retratação vem rápida como é a evidência da verdade. O jogador/ palhaço engana e pode ser enganado, sem se correr o risco de qualquer arrependimento. O palhaço/jogador pode ser mesquinho porque no instante seguinte se redime. Pode ser violento porque em sua agressividade não há nenhum efeito danoso. Sem pretensão divinal, jogador/palhaço é onipotente e onipresente. O palhaço/jogador carrega um poder “desconstrutor” e outro libertador, interfaces da condição humana.
     Marcel Proust consegue sintetizar lindamente parte da vida quando diz que: "a verdadeira viagem de descoberta, não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos."

“Cinema Paradiso”.
Jornal Gazeta de Ribeirão, de 29 de junho de 2006.
     No momento em que o consumo de Copa do Mundo é alto, gostaria de sugerir mais um vez o futebol como tema para a sétima arte. Como colaboração, aqui vai uma idéia acerca de um roteiro, espécie de primeiro esboço.
     Panorâmica das arquibancadas. Tarde de domingo. Final de campeonato. A equipe A precisa da vitória, para B basta o empate. Em BG sons de 49.317 pagantes. Câmera em zoom enquadra torcedor A. Ele quer seu time campeão. Evidente que a vitória do time A não vai trazer dindin para o bolso daquele humilde torcedor humilhado pela vida; vai simplesmente levá-lo ao paraíso. Ele quer sua alma lavada. Logo começa outro campeonato, na verdade nova edição do mesmo, e outra vez as mesmas emoções na alternância do ganhar e perder. Mas não interessa, o que o torcedor A quer é esse título. Em off ouve-se o apito do juiz. Começa o jogo. Transcorridos 89 minutos de fortes emoções e zero a zero, o jogo está parado. Falta a ser cobrada a favor da equipe A. É o minuto final. Não haverá tempo para mais nada. O adversário está todo recuado, quase todo na barreira. Em BG só a respiração atormentada do torcedor A que torce e se retorce buscando transferir sua fé para quem vai bater a falta. Close em A, seus músculos estão retesados. A expressão desfigurada de seu rosto grita vitória a qualquer custo, os olhos estampam um brilho diferente, como uma revelação. Nos limites do próprio corpo tensiona o que ainda resta dos músculos, todos eles projetados para os pés do jogador. Quem vai chutar está distante dois metros da bola. Em BG sobe lentamente o zumzumzum dos 49.317 pagantes que explodirá no final. Em off ouve-se o apito do juiz. O jogador ainda espera uns dois segundos antes de correr e chutar. Corre e chuta. Travelling. A câmera segue a trajetória da bola que ultrapassa a barreira humana do time B. Close no torcedor A que lentamente abre toda a expressão, todos os poros. Uma espécie de luminosidade celestial parece envolver seu corpo. O olhar brilhoso acompanha o caminho da pelota no ar. Fusão. A imagem da bola se justapõe a expressão do torcedor fazendo dela uma espécie de terceiro olho. Olhar e bola vão rompendo a barreira do vento. Matematicamente é certo onde esse passeio pelo ar vai terminar. As arquibancadas totalmente em pé. Close no torcedor A que agora parece sair do próprio corpo, adquire uma elasticidade de herói de HQ, contrai-se pela última vez e prepara-se para um vôo triunfal. A câmera enquadra a bola que determinada corre para o encaixe exato com o ângulo de 90 graus do gol, lado direito do goleiro, sem apelação. A única parada parece ser o abraço da rede no fundo das balizas.
     Sem que ninguém perceba, como uma ave de mau agouro, os dedos do goleiro começam a entrar no enquadramento, de baixo para cima, ameaçando demolir os castelos que o torcedor havia construído e reconstruído ao longo de todo o campeonato. No exato momento do possivel encontro - bola e goleiro - uma espessa nuvem de fumaça despejada por rojões, toma conta de todo enquadramento, e por segundos não se consegue saber se o goleiro conseguiu enfiar a unha na bola e desviar sua trajetória ou se ela foi descansar no regaço da rede.
     A câmera lentamente penetra a nuvem de fumaça que aos poucos se dissipa. Quando já é possível distinguir cores e traços, a lente capta a imagem do torcedor B que, transfigurado, chora copiosamente. O resultado de 0 x 0 confere o título ao seu time. O olhar indecifrável de B contempla extasiado o campo. O que B vê é uma epifania.

“Os Reis do ie ie ie”.
Jornal Gazeta de Ribeirão, de 29 de junho de 2006.
     O pesquisador francês Patrice Pavis, no Dicionário de Teatro, verbete partitura, afirma que a música dispõe de um sistema muito preciso para notar as partes instrumentais de um trecho, o teatro está longe de ter à sua disposição semelhante metalinguagem capaz de fazer o levantamento sincrônico de todas as artes cênicas, todos os códigos ou todos os sistemas significantes . Com respeito à autoridade de Pavis, não aceito com naturalidade a ausência ou impossibilidade de partitura no teatro nem em qualquer sistema de comunicação. Acredito que é possível encontrar-se notações para todas as artes e comunicações. Quando não existem, criamos! Pensando assim, pelo bem da ciência e amor à arte, montei um experimento para demonstrar que é possível o estabelecimento de partitura para qualquer expressão humana, até de uma narração de futebol. O experimento foi realizado tendo como base a narração do jogo entre Corinthians x Santos, do último 28 de maio pela CBN.
     Deixando de lado os procedimentos usuais inerentes a qualquer pesquisa, e suficiente apenas um dos momentos do referido jogo para demonstrar que é perfeitamente possível se pensar na partitura de uma peleja. Confesso que quase desisti porque logo nos primeiros cinco minutos de partida, entre uma intervenção e outra do comentarista, o locutor narrou sem parar - e quase sem respirar - uma seqüência de lances que cravou 1m e 21s. Fez isso a uma velocidade comparada à da luz. Um belo exemplo de fluência e flexibilidade mental e verbal. Ouvindo desavisadamente, não percebemos a dimensão delirante do “fenômeno vocal” e a possibilidade de codificá-lo. Para efeito desta pesquisa, destaco o momento do gol.
     Usando o bom portugues, assim foi narrado o gol: Bateu escanteio. Santana sobe. Gol. Dele Kleber Santana. Dele. Kleber Santana. Dele (varias vezes). Kleber Santana. Escanteio batido pela esquerda. Venenoso, com efeito. Escanteio que a bola faz aquela curva por fora, sai dos zagueiros. Vai de encontro Kleber Santana. Firme... Entretanto o que eu ouvi foi assim:
bateuuiscanteiosantanasobigoudeliklebersantanadelikleberrrrsantanadelidelidelidelidelidelidelideliklebersantan
aescanteiobatidupelaisqerdavenenozoconefeituescanteioqabolafaisaqelacurvapurforasaiduzageirusvaidincont
ruklebersantanatokafirmi...
     Para o pesquisador diligente esse registro lembra páginas e páginas de Ulisses de Joyce, e não é suficiente para provar acerca da viabilidade da partitura no futebol. A prova definitiva é: grafar a interpretacao dada pelo locutor para o mesmo texto. Convido o leitor a ler em voz alta, sem pausa, dando ênfase ao negrito, alongando e crescendo as vogais, pronunciando bem os erres, considerando maiúsculas e minúsculas:
BateuuiscanteioSANTANASOOOOOBIGOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO
OOUUUUUUDELIKLEBERRRSANTANADELIKLEBER
RRRSANTANADELIDELIDELIDELIDELIDELI
DELIDELIKLEBERSANTANAAAAESCANTEI
OBATIDUPELAISQERDAVEEENENOOZOCO
NEFEITUESCANTEIOQABOLAFAISAQELACU
RVAPURFORASAIDUZAGEIRUSVAIDINCON
TRUKLEBERSANTANATOKAFIRRMI
     Pronto! ISO 2006! Iabadabadu! Acredito ter provado fartamente a hipótese de que qualquer forma de comunicação é passível de ter seu sistema de notação. A experiência foi um sucesso além de interessante. Isso me da fôlego para propor narrações esportivas variadas, por exemplo na língua do P. Mas como a idéia pode demorar um pouco para vingar, convido o leitor para mais uma cumplicidade - comecemos agora nova pesquisa. Na língua do P seria mais ou menos assim, Pba Pteu Po Pes Pcan Pte Pio Psan Pta Pna Pso Pbe...

“ET, o Extraterrestre.“
Jornal Gazeta de Ribeirão, de 25 de junho de 2006.
     O que é bola? Bola é uma porção comprimida de ar (exceção feita às maciças), cercada de couro ou material adequado por todos os lados. Sua forma “bolal” é imutável e universal. Há quem diga que é a evolução da roda. Será? O objeto em questão tem diversos usos e aplicações, podendo ser encontrado facilmente nos esportes, dentre os quais destacam-se o vôlei, basquete, handball, tênis e o futebol. Também encontrado em práticas de dimensões menores como jogo de gude, sinuca e outros, as tais maciças. Como o momento é de Copa do Mundo a bola da vez é a de futebol. No ranking das bolas, e não sem motivo, ela é a mais glamourizada. Vista como imagem e semelhança de um pássaro candente em pleno vôo, sempre associada ao sucesso e a conquista é desejada de maneira inconfessada.
     Mas há aspectos nessa curiosa preferência que merecem um olhar mais apurado. Primeiro é quanto à injustiça que se faz à “entidade” bola; uma vez que o principio é único, bola é bola e ponto final. No entanto quando existem, os louros vão todos para a de futebol. Só se têm olhos para ela. Brilhos e holofotes incidindo sobre a bicha. Estrela máxima de todas as bolas, a gorduchinha já foi tema de todas artes. Tudo é a bola de futebol. Alguém já viu um atleta declarando-se a uma de futebol americano? Um competidor sendo dengoso com a de tênis antes do saque? Alguém tem noticia de algum “Concerto em Ré Menor para Piano e Bola de Vôlei”? Algum poema épico intitulado “Tributo à Bola de Golfe”? Nunca soube que uma pessoa tenha dado um beijo na bola de pebolim ou que alguém tenha conversado com a de pingue-pongue antes da cortada. Por fim, existe homem ou mulher neste mundo que ame uma bola de pólo aquático? Agora com a de futebol é diferente, milhões a amam. Tremendo paradoxo, a redonda leva cacetada, pontapé, porrada, é esmurrada e mesmo assim se prostra aos pés do homem. E ainda é idolatrada por isso! Para completar, a idolatria lhe confere monumento! Viram o tamanho da "escultura" da supracitada em frente ao Portão de Brandenburgo? Aquela obra da engenharia ostenta a mesma imponência que a Torre Eiffel. Só falta agora figurar ao lado do Colosso de Rodes entre outras maravilhas, como a oitava.
     O outro aspecto a ser considerado diz respeito à real natureza da bola de futebol, sua verdade íntima. E essa verdade é que ela não é toda glamour como parece, não se inscreve somente na esfera poética das sensações. É "coisa" de duas caras: a primeira, a da usurpação como já vimos, a outra, a da libertina, tipo da sujeitinha “não bate que eu gamo”, assim como corrimão que "todo mundo passa a mão" ou como big mac que "todo mundo quer comer". A bola de futebol é volúvel, não se apaixona por um único pé, passa despudoradamente por no mínimo 44 pés e 44 mãos em partida oficial. Infiel, ora cai para os braços e pernas de um, ora de outro. Traiçoeira, em quem não se pode confiar. Contraditória, ao mesmo tempo que é rebelde, nem sempre fazendo o que o homem quer no jogo, e é dependente, não age por conta própria. Não tem opinião, para ela tanto faz se ganha um ou outro ou se não ganha ninguém, é a mesma coisa sempre. Um horror.
     Para que as diferenças não se tornem volumosas demais, tornando a vida insuportável, acredito que passada a Copa, uma revisão conceitual para “baixar a bola” da bola seria providencial.

“Adivinhe quem vem para o jantar.”
Jornal Gazeta de Ribeirão, de 22 de junho de 2006.
     Atrás do esporte, particularmente nos bastidores do futebol, há um exército difícil de calcular, de parceiros, colaboradores, prestadores de serviço, etc. Uma rede extensa de participações e atuações de pessoas que contribuem para abrilhantar o espetáculo futebolístico. Profissionais e amadores de vários segmentos do trabalho. Algumas funções desempenhadas por intrépidos homens ou fantásticas mulheres, concentram altas cargas de ódio ou paixão dependendo do lado em que está o torcedor. Um comentarista esportivo, mesmo quando analisa criteriosamente e sem parcialidade um jogo, apenas dizendo a mais absoluta verdade sobre a peleja, sente os ares da glória e o bafo do escárnio simultaneamente. Para o torcedor cujo time venceu, o comentarista expõe toda a positividade do time, é um profissional sério, justo e sábio. Para o torcedor que perde, o mesmo dito cujo é CENSURADO. São os tais quinze minutos de fama ou esculhambação. Inevitável, é assim com todos, ou melhor, com quase todos, porque há uma figura que participa deste universo, uma colaboradora incansável que não desfruta da virtualidade dos dois quinze minutos. Uma parceira que só conhece os quinze piores, e na maioria das vezes ultrapassa em muito esse tempo. Uma personagem lembrada - dias e dias - de maneira pouco bretã. Essa figura, doce e afável, carinhosa e zelosa, expressão máxima da bondade, modelo de conduta, guardiã do amor, artífice da vida, rainha do lar, não é outra se não a mãe do juiz.
     A dita senhora, uma instituição tão antiga como a própria bola, mereceria tratamento mais digno, respeitoso. Mas não! Cada vez mais é vilipendiada, humilhada e ofendida. E em época de copa do mundo a turba parece que se enfurece mais e acrescenta ao palavreado impróprio, comentários ainda menos elogiosos, ôôôôôdóóóóó! Muito provavelmente ouviremos nos gramados ou pelas transmissões da media algum gaiato referir-se a progenitora do árbitro de maneira grosseira: sua mãe tem o apelido de pittbull ou sua mãe faz terere debaixo do braço ou ainda sua mãe cata papelão. É muita injustiça. A coitada é sempre a primeira a ser chamada à atenção se algo acontece de errado durante o jogo. Proponho anistia já para a mãe do juiz. A pobre senhora está estigmatizada demais. Anistia Já!. A dita cuja é privada das coisas mais simples. É comum um filho visitar o trabalho do pai ou da mãe e vice versa. Mas a mãe do juiz jamais poderá freqüentar o serviço do filho. Isso é terrível. Uma ignomínia. Além do mais esse comportamento generalizado de torcedores e simpatizantes do esporte - fustigar a mãe do juiz - é tendencioso. Será que a do juiz é a única que merece ser lembrada insistentemente? E a do bandeirinha? Isso mesmo, a do bandeirinha! Alguém pensou nela ou a respectiva está acima de qualquer suspeita? Sim, porque o bandeirinha é aquele auxiliar que quase sempre está engessado - braço para cima ou para abaixo; enxerga impedimento onde não existe e tenho minhas dúvidas se sabe a diferença entre mão-na-bola e bola-não-mão.
     Concordo que tem situações em que a mãe do juiz deva ser invocada mais do que todas, mas a bem da verdade, do jeito que o País está caminhando, milhares de outras mães mereciam estar no lugar da do juiz. Se somos todos iguais perante a Lei...

“Um golpe a Italiana”.
Jornal Gazeta de Ribeirão, de 18 de junho de 2006.
     Para quem quer conhecer um pouco sobre ópera, não pode deixar de ler Zito Baptista Filho e seu consistente “A Ópera - guia dos enredos das 222 óperas mais importantes de todos os tempos”. Zito Filho recomenda consultar "American Opera and Its Composers", de Edward Hipsher, que afirma que há devidamente catalogadas na Biblioteca Nacional de Paris, cerca de vinte e oito mil partituras. Isso desperta a curiosidade: será que nenhuminha, pelo menos as do século XX, celebra o futebol? Será que ninguém pensou no esporte como mote para uma obra operística? Nenhuma cantata? O futebol já foi incensado pela literatura prosa e verso, cinema, teatro, fotografia, artes plásticas... tudo, menos a ópera. O gênero se inscreve como arte maior, por isso exigente e seletiva a ponto de desprezar uma paixão como o futebol? Não acredito nisso. Tanto um como outro tem origem européia, nobre, portanto não há possibilidade de rejeição. Além do mais, a tendência das artes no Século XXI aponta para uma expressão híbrida, resultado da justaposição de linguagens. O teatro por exemplo, objeto de meu desejo e meu ganha-pão e vinho, congrega várias e diferentes linguagens.
     Na eventualidade do futebol estar fora do mundo da ópera, primeiro quero registrar minha indignação. Segundo, quero contribuir para o casamento dos dois colocando à disposição dos interessados um libreto sobre o assunto. Ainda é um esboço, apenas o registro de algumas idéias para motivar possíveis parceiros de autoria. Sugiro inclusive, para agilizar processos criativos, plágios declarados. Uma dessas apropriações seria a célebre ária Nessun Dorma da “Turandot”, que poderia ser interpretada por qualquer um cuja noite anterior ao jogo fosse de total terror. Lindo também seria um coral formado por 49.317 vozes pagantes, cantando “Filho da Ponta” (livre tradução do original) em uníssono. O coro iniciaria em bocca-chiusa, e depois explodiria repetindo o estribilho “Filho da Ponta! Filho da Ponta! Filho da Ponta!” saudando indistintamente juiz, auxiliares, jogadores, cartolas, etc.
     O dirigente por sua vez cantaria, por razões óbvias, Vesti la Giubba, ária famosa da ópera “Pagliacci”, de Leoncavallo.
     Com relação às vozes masculinas encontradas na ópera são elas as do baixo, tenor, barítono; as femininas estão distribuídas entre soprano, meio soprano e contralto. Como as regras futebolísticas ainda não permitem mesclarmos os times escalando homens e mulheres, recorreríamos aos castrati, - cantores que são castrados quando meninos para conservar a amplitude da voz soprano ou contralto. (cf. Michaelis). Se fosse para indicar para o naipe das sopranos eu elencaria Ronaldo Fenômeno, Marcelinho Carioca e Edmundo Animal; já para contraltos sugeriria Juninho Pernambucano, Fábio Costa e Rogério Ceni.
     A cena final seria o goleiro ajoelhado, derrotado depois de sofrer o gol. Ele retiraria da meia um canivetinho suíço e ainda dentro do plágio declarado, entoaria uma versão da não menos célebre ária da “Madame Butterfly”, Con Onor Muore, quando Cio-Cio-San no último ato pratica o haraquiri. Na ópera de Puccini, Cio-Cio-San esconde-se atrás de um reposteiro. Nessa adaptação, o goleiro ou já está no reposteiro ou desaba no centro do gol sob uma chuva de sapatos, bandeirolas, etc., atirados pelo coro cantando o "Filho da ponta". E isso seria apenas o começo.
     Só espero que ninguém precise “incorporar” um outro D. Pedro II para patrocinar um novo Carlos Gomes. De minha parte já coloquei minha disponibilidade como libretista para incluir o futebol como assunto do bel canto e empurrar a ópera brasileira aos píncaros da glória. Com a palavra os companheiros plagiadores.
    
“Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”
Jornal Gazeta de Ribeirão, de 15 de junho de 2006.
     A face sombria do futebol, o lado ruim do esporte, é a escalada vertiginosa da violência. É comum ver torcedores brigando entre si, em confronto com a polícia, agredindo profissionais da imprensa. Até jogador versus companheiro do mesmo time, em treino, já temos noticia. O fenômeno não é isolado, muito menos recente. Países tidos como "civilizados" amargam convivência indigesta com torcidas "armadas". Ainda estão nos nossos olhos as cores fortes dos tumultos no jogo Corinthians X River Plate, em maio deste ano. A intenção de invadir o campo daqueles torcedores foi tão inesperada quanto absurda. Para inibir ações como as que presenciamos naquela quinta-feira é que devemos intensificar campanhas que pacifiquem o esporte. Paz nos campos!
     Quero aqui dar minha contribuição relatando diálogo entre torcedor (T) e policial (P), partícipes em lados opostos, de tentativa de invasão do gramado durante o jogo Itaquaquecetubense e Piabiruense. Parte da torcida já tinha derrubado o alambrado e estava municiada com paus e pedras, a polícia com seu armamento. A conversa é digna de nota e serve de exemplo de urbanidade e polidez.
T - Com licença.
P - Pois não. O senhor deseja...?
T - Com sua permissão e com o aval de parcela significativa dos simpatizantes da minha agremiação futebolística, pretendo invadir o campo.
P - Desculpe-me cavalheiro, mas acho que não entendi bem.
T - Prezado policial, respaldado pelos meus pares, gostaria de adentrar o gramado com uma ação que o agente da lei poderá qualificar como invasão.
P - Data venia com todo respeito que V. Sa. certamente merece, asseguro que isso é praticamente impossível, senhor... senhor... qual sua graça?
T - Wellington da Silva Santos.
P - Washington Santos da Silva, a seu dispor. Com relação ao vosso pleito, reitero estar fora de cogitação. Ex autoritate legis.
T - Prezado policial, ad argumentandum, gostaria de lembrá-lo de que estamos numa democracia e a Constituição nos assegura em seu Título II, Capítulo I, Art. 5°, Inciso XV, a liberdade de ir e vir, portanto, com sua aquiescência...
P - Senhor da Silva, sempre me pautei pela decência e honradez. Jamais agi ao arrepio da lei. Na condição de policial, matrícula 45639, mas acima de tudo no exercício da cidadania, insisto em dizer que sua intenção é descabida e que em hipótese alguma poderia eu endossá-la.
T - Oficial Santos da Silva, ocorre que uma energia desconhecida toma conta de meu ser. Uma força terrível e incontrolável acumula-se nos meus músculos. Meus olhos turvam. É imperioso que eu invada o gramado...
P - Seria muito pretender saber os motivos que o levam a querer praticar esse ato tresloucado?
T - Perfeitamente. Gostaria de colocar os pingos nos is, em conversa reservada com os desassisados, mandriões e ineptos que enxovalham o glorioso pavilhão de meu clube.
P - Posso compreender sua indignação. Sentir seu âmago dilacerado. A ira corroendo-o. Amargo é o gosto da derrota. É fel! Todavia vejo em seu semblante que não é sua vontade a invasão. Seu olhar reflete bondade, grandeza interior. Desista de tal empreitada. A vida há de sorrir-lhe novamente.
T - Tem razão, policial. Fui mesmo um tolo ao pretender invadir o próprio da municipalidade. Estou envergonhado. Se fui rude peço perdão. Agi intempestivamente acreditando que com minha tentativa insana pudesse chamar aos brios os atletas. Oh razão, me foges em tão cruel momento!
P - Vá em paz, bom homem. Hoc opus, hic labor est.

“Forrest Gump”.
Jornal Gazeta de Ribeirão, de 11 de junho de 2006.
     Pouco antes do embarque do escrete brasileiro para mais uma Copa do Mundo de Futebol, conseguimos com exclusividade acompanhar uma reunião secreta - em local ermo e desconhecido - entre o treinador Parreira, PA na intimidade, e nossos “canarinhos” mais valorizados. A reunião era para acertar os últimos detalhes da estratégia que a seleção adotará para uma ofensiva que traga aquela quantidade de ouro para o bem do Brasil. A íntegra dos diálogos é a que segue:
PA - Gente, vamos começar atacando. O pontapé inicial é nosso. Kaká, você pega a bola e dá um arabesque. Eleva uma perna, reta ou dobrada e com a outra estendida para trás, passa para o Ronaldo
KAKÁ - Mas logo eu vou fazer isso,"seu" PA?...
PA - Você sim. Aí o Ronaldo com um glissade en arrière atrasa para o Ronaldinho.
RONALDO - Só isso? Acho que num vai ficá bom...
PA - Vai por mim, está tudo sob controle. Robinho, você pega e coloca a bola com um grand assemblé en tournant. Só pode ser feito em dessus ou derrière mas precedido por um pas couru ou um chassé. Entendeu?
ROB - Ôôô... tudinho!
PA - Adriano, daí é contigo. O Juninho lança da direita. Você corre pela esquerda. Finta com um battement fondu développé.
ADRIANO - Péra péra péra... como eu faço isso!?
PA - Fazendo, ué! Não é profissional? Pode ser feito em devant, derrière e à la seconde. Em fondu atrás, a posição do pé é sur le cou-de-pied derrière. Em fondu à frente, a posição do pé é sur le cou-de-pied devant. Compreendeu?
ADRIANO - Vou me esforçar...
PA - Ronaldo, outra coisa, para evitar bolhas nos pés, no meio do campo antes de tocar a bola, faz cinq positions des pieds. As cinco posições básicas dos pés no balé clássico. Tudo bem?
RONALDO - Hummmm... sei não...
PA - Cafu, você está na posição do líbero. Sabe o que tem de fazer?
CAFU - Liberar geral!
PA - Isso! Do jeito que vier, tira a bola dali com um petit battement sur le cou-de-pied. Chuta com o pé de base à terre, sur la demi-pointe ou sur la pointe.
CAFU - Se não der, eu chuto de qualquer jeito...
PA - Roberto Carlos, cuidado com as bolas altas. No escanteio você entra com épaulement, ligeiro movimento dos ombros, em croise ou efface, em relação à cabeça e às pernas
R.Car - Tudo eu! Tudo eu!
PA - Dida, não demora para repor a bola em jogo. Pega e toca rápido para frente. Qualquer coisa, com um passo saltitante, um sault de basque, você aterrissa. Quero você atento para o jeté entrelacé, porque no Checchetti é grand jeté en tournant en arrière.
DIDA - Mas eu sozinho, PA? Ninguém recua? Num vai ficá esquisito?...
PA - Emerson, você vem de trás na diagonal em fouette junto com o Ronaldinho.
EMERSON - Eu c’o Ronaldinho? Isso num vai prestá, PA...
PA - Lúcio, você corre em brisé volé, e...
LÚCIO - Ô "seu" PA, se é pra fazer essas coisas, deixa eu no banco, deixa...
PA - Quero dois homens fixos na defesa. Roberto Carlos e Cafu. Na saída toquem a bola em pas de bourée couru, pirouette à la seconde, até a intermediária.
RESERVAS - PA, e a gente faz o quê, quando?
PA - Vocês treinam o sissone fermée, passo de elevação lenta executada em tempo rápido que acaba com o pé que está trabalhando colado no chão em demi-plié na quinta posição. O pessoal do banco aquece fazendo rond de jambe en l'air. Atenção que o dedo do pé deve trabalhar movimento oval. A coxa mexe o mínimo possível e os quadris devem ser bem virados. O ápice do movimento é quando o pé fica em segunda posição en l'air. Agora, rumo ao hexa!

“No tempo das diligencias”.
Jornal Gazeta de Ribeirão, de 08 de junho de 2006.
     Apita o árbitro, abre a cortina e começa o espetáculo.... Era assim nos meus tempos de menino que pelo radio, Fiori Giglioti começava irradiar uma tarde domingueira de futebol. A voz característica do speaker, com erres bem pronunciados e tonalidade nobre, criava licenciosidades poéticas que conduziam-me a uma viagem fantástica: desenhar no quadro negro dos olhos fechados, dribles, lances, jogadas... o êxtase do gol. Não importava muito se o time de devoção ganhava ou perdia, o que de fato estava em jogo era a possibilidade de voar. Transcender.
     Giglioti com um microfone na mão, através das ondas AM, era o grande ilusionista. Complicado era conseguir chegar próximo à idéia da luminosidade natural do dia, quando ele descrevia a tarde ensolarada de domingo boa para a prática do futebol, tal o requinte da fala. O locutor tinha a capacidade de multiplicar as imagens-em-ação projetadas na tela escura dos olhos cerrados. Dentro das nossas cabeças brincávamos de surreal quando FG "cantava" que não-sei-lá-quem ...deu um chapéu no zagueiro ou que tal jogador cobrou a falta com um lindo chute de folha seca! Jamais vou querer que se dissipe das minhas memórias afetivas a maneira como fiquei sabendo da existência do chute de bicicleta. Em um domingo ensolarado, nos idos do século passado, com os ouvidos grudados no Fiori... aconteceu! O gol de bicicleta! FG ia descortinando a jogada e a cachola implodia. Gol de bicicleta? Como era isso? Será que o camisa oito pegou uma “bike”, passeou pelo gramado desviando dos adversários com a bola na garupa da “magrela” e partiu para entrar no gol? O tempo todo de jogo era uma provocação à minha capacidade de imaginar. Na mente só malabarismos. Às vezes tinha a sensação de que era um jogo diferente, os dois adversários disputando entre si e eu correndo entre eles, jogando junto.
     Quando o craque da locução esportiva anunciava crepúsculo de jogo, era o sinal de que começávamos retornar à condição de abóboras. Aquela cortina se fecharia até o próximo domingo.
     Mas o que é espetáculo é espetaculoso e preserva a imaginação indomável. Por isso segunda-feira depois da aula, lá estávamos nós com uma rota bola de meia nos pés, espichando o domingo. Alunos aplicados na arte do futebol, quase esgotávamos as possibilidades de entender um chute de três dedos ou bater na bola de sem pulo. Fazíamos cálculos, medíamos distâncias, traçávamos possíveis trajetórias da "de meia" que para nós tinha status de "bola de capotão". Tamanho oficial! Para nós o centro do mundo era ali na calçada, entre as linhas imaginárias de um campo de futebol. Com as buzinas e aceleradas dos carros fazendo papel do som das arquibancadas, driblávamos até as pessoas que, em trânsito, adentravam nossa cancha...
     Hoje quando assisto um jogo de bola, enxergo dois "futebóis”: o que meus olhos testemunham e aquele que trago dentro de mim, um sobreposto ao outro. O primeiro é o da hora, o segundo, permanente, rigorosamente o mesmo sempre! O futebol de bola de meia é um dos mais queridos encantamentos que se guarda da infância.
     Agüeeenta coração. Esse é um dos mais célebres bordões criados por Fiori Giglioti.