O que primeiro chamou minha atenção quando comecei - voluntariamente - trabalhar teatro com reeducandas da Penitenciária Feminina de Ribeirão Preto em fevereiro de 06, não foi a situação da cadeia ou o “clima” que o espaço prisional estabelece, o que chamou minha atenção foi a surpresa que podia ser vista nas expressões das “meninas” que, com um silencio doído, perguntavam com os olhos: “o que você veio fazer aqui?” Diante do questionamento calado, logo tratei de falar: “estou aqui porque tenho interesse em pessoas que continuam sonhando e aqui me parece um lugar onde se sonha muito. Acredito que aqui o sonhar acontece todo dia. Então eu estou aqui porque me interesso muito por essas pessoas.”
Essa minha fala, mais do que uma resposta, uma proposta de dignificar um pouco a vida vivida ali, foi o passaporte para um trabalho surpreendente, onde o teatro na sua dimensão estética, pesou bem menos do que a recuperação da auto-imagem e auto-estima delas.
Mas que sonhos poderiam, ali, germinar? A convivência de um ano revelou sonhos como ganhar de novo a liberdade, voltar para casa, recuperar a família, resgatar a dignidade, reaver a vida, enfim, reconquistar o respeito da sociedade.
“Sou apenas um homem de teatro”, é isso que sou. E aqui falo dessa perspectiva. Dessa perspectiva vejo o mundo e vivo cenas. Através delas procuro entendê-lo e interpretá-lo. Se o teatro não vai mudar o mundo, pelo menos muda a maneira de enxergá-lo. E as cenas mais terríveis não vivi dentro da Penitenciária. Lá as cenas - emocionantes e fortes - revelaram-me uma imagem da mulher presidiária que, mesmo embrutecida pela prisão, não perdeu sua natureza, sua feminilidade, sua predisposição para a maternidade, sua sensibilidade, seu virtual status de esposa, sua condição de filha. A essência da Mulher, com todas suas possibilidades, mantém-se intacta.
Cenas horripilantes, na verdade, protagonizei nas ruas, em salas e salões, em escritórios. Passagens de uma novela sem qualquer glamour, “páginas da vida” das pessoas, onde se inscreve uma dramaturgia das trevas.
Quanto ao meu projeto com as presidiárias, é interessante observar que alguns coadjuvantes se solidarizaram, poucos colaboraram, muitos expressaram indignação: “Fazer teatro com presidiárias? Você está louco?” Ainda não.
O curioso nessas opiniões foi que me fizeram ler um pouco melhor os coadjuvantes impactados e pude observar que eles têm dois olhares. Um generoso para as questões da terceira idade; esperançoso com relação ao menor abandonado, a criança violentada; assistencialista para os doentes, deficientes e insanos; complacente com aquele que reconhece o erro e busca regeneração; incentivador para quem se converte às idéias “do bem”; acolhedor para a mulher que sofre agressões, a mulher batalhadora; altruísta e de solidariedade para toda e qualquer campanha; positivo e desafiador para quem luta contra os próprios vícios; afetivo para as carências; cúmplice a quem abriga sob suas próprias expensas, pessoas vitimadas; abnegado a todo aquele que busca sair do poço. Reconheci neles olhares auspiciosos e de grandeza de alma no proceder com relação a toda sorte de miserabilidade, fraqueza, ausência, indigência e penúria. O outro olhar é o lançado para essas “meninas” Um olhar preconceituoso? Não! O que revela vai além, ultrapassa os limites de qualquer definição de preconceito. Olhar escandaloso, de alijamento e execração, que não admite possibilidades. Olhar tenebroso.
Condená-las à exclusão, indistintamente e pelo resto da vida, é uma distorção humana grave, direito não assegurado a ninguém.
Fazendo papel permanente de alerta à minha integridade, ouvi absurdos de pessoas graúdas e miúdas. A fala da cena final – não a derradeira – foi a mais dantesca produzida por esses coadjuvantes sem talento. Um texto, ordinário, não precisava mais nada para estampar o inqualificável: “A Suzane (von Richthofen), esta lá? Viu ela? Ela está fazendo teatro com você? Pede um autógrafo.”
“Ah, humanidade!”