Texto publicado na Revista BEM VIVER nº 7, publicação quadrimestral da Construtora Pereira Alvim de Ribeirão Preto.
Conta-se que um homem, inteligente e talentoso, viveu sua vida em cima dos palcos. Era um ator. Esteve na pele de bandidos e mocinhos, de sanguinários implacáveis a galãs românticos. Passou, literalmente “na cara”, uma coleção de tipos humanos. Em todos era simplesmente brilhante. Uma unanimidade!
Conta-se que um homem, inteligente e talentoso, viveu sua vida em cima dos palcos. Era um ator. Esteve na pele de bandidos e mocinhos, de sanguinários implacáveis a galãs românticos. Passou, literalmente “na cara”, uma coleção de tipos humanos. Em todos era simplesmente brilhante. Uma unanimidade!
Um dia, um “fenômeno” começou a manifestar-se longe das luzes da ribalta: o que o homem falava ou sentia, mistura-se com o que “dizia” e “pensava” as personagens que acabava de interpretar, assumia a performance das máscaras. Tornava-se notório o descompasso com a vida. Quando enciumado, era com a intensidade de Otelo. Quando amava, era Cyrano de Bergerac. Quando a vida exigia que fosse hipócrita e farsante, era Tartufo. Era Lady Macbeth, quando estava terrível. Quando sua sensibilidade despontava forte, era Blanche Duboi, e sua avareza não era menor do que a de Harpagon. A imobilidade na vida e a incapacidade de decisão, ele as tomava de Estragon.
Transformava-se irreversivelmente. Não tinha mais “suas” vontades, nem sonhos, nem paixões. Derrubava, sem volta, a fronteira entre a cena e o real. Era uma só ficção, vivia todas as vidas, menos uma: a sua! Todos os indícios apontavam que, nessa espiral, o homem sucumbiria. E sucumbiu!
Tanto talento e disciplina renderam-lhe a descaracterização. Retalhos de todas suas personagens engoliram-no. Seu derradeiro papel seguramente deve ter sido doutor Fausto de Goethe: vendeu-se todo... às máscaras!
Todavia, mesmo lamentando a história do ator, ciente dos riscos da incorporação, nenhuma restrição à adoção de qualquer tipo de persona, mesmo porque estamos condenados a ela. As condições que a vida nos apresenta, impõem o uso diário de determinadas máscaras. E convenhamos, elas são atraentes e sedutoras. Às vezes declaram amores voláteis; outras, juras impossíveis. Estão no nosso cotidiano como estratégia terapêutica, para elevarmos nossa percepção do outro, favorecer o olhar multifocal. Compõem também nossas ações quando necessitamos engolir sapos, tolerar o insuportável, ser afável quando obrigatório. Máscaras nos tornam ardilosos, dissimulados e farsantes. Nos fazem piratas em todas as águas. Mas daí subverter o que não é para ser subvertido, não compensa, quer dizer, para uma “vida saudável”, não é aconselhável costurar qualquer máscara ao corpo e à mente; ou simplesmente, não se deve inverter a prioridade, primeiro a máscara depois “eu”.
Para melhor compreensão desse “mecanismo”, é importante observar um aspecto, pouco percebido pela maioria das pessoas: toda máscara é sempre double-face! Não necessariamente uma espécie de verso e reverso. A “dupla condição” tem a ver com a maneira com a qual nos envolvemos com a dita cuja.
Se de um lado os “usos e costumes” recomendam olhar através dela; de outro, o inconformismo grita para olharmos para ela... E afrontá-la! Não permitir que nenhuma nos invada e tome conta do que temos de mais vital: nossa própria máscara, aquela que construímos através de nossas convicções, crenças e escolhas. Nosso “dna”. Aquela que nos coloca “justos” nas circunstâncias da vida. A única que sustentamos “na dor e no amor, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza...”.
O que aconteceu com aquele ator foi a rendição. O pobre homem apenas olhou através das máscaras, não as enfrentou, não pelejou, não ofereceu resistência. Deixou que todas o possuíssem sem contestação. Aceitou mansamente a própria “desapropriação”. Foi inoculado por todos os delírios, insanidades, ódios e amores. Engravidou dos sentimentos do mundo, menos dos seus. E deu no que deu: foi tragado.