Texto publicado na revista BEM VIVER, nº 10,
publicação quadrimestral da Construtora Pereira Alvim de Ribeirão Preto.
O verde
multifacetado, já esmaecendo, domina a extensão que os olhos alcançam, num
cenário que empurra o outono para longe e anuncia a rigidez do inverno. Já é
possível ver a neve começando tingir o cume das montanhas. Apenas as retinas, o
coração e alma piena podem guardar a
visão através da janela do trem. A vontade é descer e dançar ao redor das
oliveiras selvagens... mas seria uma dança curta porque as árvores logo estarão
desnudas. A vida começará a hibernar para elas.
O trem está chegando
ao seu destino. Só se conhece Roma se se deixar levar pelos ventos –
frenéticos, voluntariosos, sem qualquer direção prévia! Quantas e tantas vezes
se estiver aqui, tantas e quantas serão necessárias para desvendá-la, porque a
cidade é definitiva! Imperativa! Incredibile!
O presente refaz o passado a todo o momento. Tempos recorrentes. A existência
fica sempre mais grávida de paixão
Desta vez estou determinado ao
Aventino, tentado a buscar algum vestígio da passagem de Flória Emília e
Aurélio Agostinho por lá. Tenho minhas suspeitas acerca de Vita Brevis, a suposta carta dela para ele. Mas sobre a paixão
deles não tenho dúvidas. E isso me inspira a investigar, parar em cada canto da
colina. Espiar por entre cada porta.
Fiz
isso todo o tempo... e nenhum fio de cabelo sequer nem de um nem de outro;
nenhum indício de Aurel e Flória. Nenhuma pegada dos amantes.
Mas a jornada pelo
Aventino não ficaria impune. Fui para a Piazza
dei Cavalieri di Malta, direto para a casa 3. Na porta da casa, acima da
fechadura há um furo arquitetonicamente construído. Gosto de olhar através
dele, a visão que se tem é alguma coisa elevada. Dizem que aquela construção é
projeto de.Michelangelo. É possível. Através daquele buraco vê-se uma alameda
arborizada e... bem, é melhor não estragar a surpresa.
Deixo o Aventino
porque tenho pouco tempo até o Termini. No caminho a Basílica de Santa Prassede. Quero passar depressa,
mas não consigo. Através da porta entreaberta ouço sí, ch`io vorrei morire...
ch`io vorrei morire. Arrisco entrar com cuidado e reconheço um coro
madrigalista entoando Monteverdi. Alguma coisa curiosa nisso tudo: os versos de
Maurizio Moro la bella bocca del mio
amato core são lascivos, licenciosos ahi,
car'e dolce língua datemi tant'humore... o profano de Monteverdi também
conquistou a igreja? Mas isso é o que menos importa naquele momento só quero
ouvir ahi, bocca ahi! baci ahi! lingua! Ando,
quase sem ser percebido, para traz de uma majestosa coluna e fico imóvel porque
é impossível deixar de viver isso ahi,
lingua torn'a dire si, ch'io vorrei morire.
Aquele som provoca
uma espécie de ressonância afetiva. O coro agora ensaia sfogava con le stelle un infermo
d'amore. Apenas o corpo
permanece parado, os sentidos, mais aguçados, movem-se em todas as direções.
Fico intrigado porque a coluna a minha frente não acompanha a riqueza de
detalhes e significados de toda a igreja. Há a pintura de um busto, sem nenhum
acento cristão, que destoa de tudo: do arco do período carolingeo, dos mosaicos coloridos, dos dourados e cores
vivas de todas as outras representações.
Com che dar più vi poss’io? os
madrigalistas terminam o ensaio e não há mais trem para eu voltar para casa.
Mas isso não é importante, tenho cerca de quatro horas até o primeiro da
madrugada, para gravar definitivamente dentro de mim, toda ventura do dia.
Em
tempo: a pintura na coluna, o busto que me deixou intrigado, era uma espécie de
assinatura, simplesmente o auto-retrato de Caravaggio.