domingo, 15 de abril de 2012

Che dar più vi poss’io? Monteverdi livro V


Texto publicado na revista BEM VIVER, nº 10, publicação quadrimestral da Construtora Pereira Alvim de Ribeirão Preto.



O verde multifacetado, já esmaecendo, domina a extensão que os olhos alcançam, num cenário que empurra o outono para longe e anuncia a rigidez do inverno. Já é possível ver a neve começando tingir o cume das montanhas. Apenas as retinas, o coração e alma piena podem guardar a visão através da janela do trem. A vontade é descer e dançar ao redor das oliveiras selvagens... mas seria uma dança curta porque as árvores logo estarão desnudas. A vida começará a hibernar para elas.

O trem está chegando ao seu destino. Só se conhece Roma se se deixar levar pelos ventos – frenéticos, voluntariosos, sem qualquer direção prévia! Quantas e tantas vezes se estiver aqui, tantas e quantas serão necessárias para desvendá-la, porque a cidade é definitiva! Imperativa! Incredibile! O presente refaz o passado a todo o momento. Tempos recorrentes. A existência fica sempre mais grávida de paixão

            Desta vez estou determinado ao Aventino, tentado a buscar algum vestígio da passagem de Flória Emília e Aurélio Agostinho por lá. Tenho minhas suspeitas acerca de Vita Brevis, a suposta carta dela para ele. Mas sobre a paixão deles não tenho dúvidas. E isso me inspira a investigar, parar em cada canto da colina. Espiar por entre cada porta.

            Fiz isso todo o tempo... e nenhum fio de cabelo sequer nem de um nem de outro; nenhum indício de Aurel e Flória. Nenhuma pegada dos amantes.

Mas a jornada pelo Aventino não ficaria impune. Fui para a Piazza dei Cavalieri di Malta, direto para a casa 3. Na porta da casa, acima da fechadura há um furo arquitetonicamente construído. Gosto de olhar através dele, a visão que se tem é alguma coisa elevada. Dizem que aquela construção é projeto de.Michelangelo. É possível. Através daquele buraco vê-se uma alameda arborizada e... bem, é melhor não estragar a surpresa.

Deixo o Aventino porque tenho pouco tempo até o Termini.    No caminho a Basílica de Santa Prassede. Quero passar depressa, mas não consigo. Através da porta entreaberta ouço sí, ch`io vorrei morire... ch`io vorrei morire. Arrisco entrar com cuidado e reconheço um coro madrigalista entoando Monteverdi. Alguma coisa curiosa nisso tudo: os versos de Maurizio Moro la bella bocca del mio amato core são lascivos, licenciosos ahi, car'e dolce língua datemi tant'humore... o profano de Monteverdi também conquistou a igreja? Mas isso é o que menos importa naquele momento só quero ouvir ahi, bocca ahi! baci ahi! lingua! Ando, quase sem ser percebido, para traz de uma majestosa coluna e fico imóvel porque é impossível deixar de viver isso ahi, lingua torn'a dire si, ch'io vorrei morire.

Aquele som provoca uma espécie de ressonância afetiva. O coro agora ensaia sfogava con le stelle un infermo d'amore.  Apenas o corpo permanece parado, os sentidos, mais aguçados, movem-se em todas as direções. Fico intrigado porque a coluna a minha frente não acompanha a riqueza de detalhes e significados de toda a igreja. Há a pintura de um busto, sem nenhum acento cristão, que destoa de tudo: do arco do período carolingeo, dos mosaicos coloridos, dos dourados e cores vivas de todas as outras representações.

Com che dar più vi poss’io? os madrigalistas terminam o ensaio e não há mais trem para eu voltar para casa. Mas isso não é importante, tenho cerca de quatro horas até o primeiro da madrugada, para gravar definitivamente dentro de mim, toda ventura do dia.

            Em tempo: a pintura na coluna, o busto que me deixou intrigado, era uma espécie de assinatura, simplesmente o auto-retrato de Caravaggio.




Menor que meu sonho, não posso ser. Lindolf Bell


Texto publicado na revista BEM VIVER, nº  9, publicação quadrimestral da Construtora Pereira Alvim de Ribeirão Preto.



Uma velha e sempre providencial história.

           

Um estava na esquina, encostado à parede. Encolhido e quieto, sem nada para ser notado. Era Um comum. O Outro andava pela calçada. Vinha em paz. Com uma moeda na mão, buscava alguém que a merecesse: sua boa ação daquele dia. Com ela, Outro sabia que qualquer Um, poderia ter alimento, teto, boa saúde, crescer, tornar-se letrado, enfim...  usufruir do  melhor das coisas.  Quando Outro viu Um, parou radiante e estendeu-lhe a moeda. Perfeito! Completava sua benemerência. Entronizava-se nos benefícios dos céus!

Um agradeceu a generosidade, mas não estendeu a mão para a moeda. Não aceitava a oferta. “Não?!” O Outro estranhou: “um miserável não aceitar!?” Talvez ruídos na comunicação... e insistiu na oferta. Um disse que se o Outro quisesse dar-lhe alguma coisa, que lhe desse ouvidos por sete minutos: “apenas sete! só sete!” Desse, e Um estaria recompensado. Teria recebido o donativo. “Está bem!” O outro concordava. “Mas... porque sete?”

Com paciencia secular, principiou falando dos sete... pecados capitais! E falou muito sobre eles!  Bastante mesmo! Depois disse das sete idades do homem, dos sete planos da evolução, das sete virtudes humanas. “O sete – enfatizava – traz a idéia de totalidade, do completo!”

Argumentando acerca do sete na história, astronomia, teosofia, esoterismo, filosofia, física, e outros conhecimentos,  Um  passeava por todas as ciências, crendices e sabedoria popular, tirando o véu do número da perfeição. Assim, as sete rondas planetárias e as sete raças-raiz foram sendo vislumbradas, da mesma forma que os sete elementais, as sete divindades que regem a natureza.  O significado do  sete ia sendo disseminado ao vento... Estacionados em pé, ali na calçada, Um e Outro permaneceram dias e dias numa interminável  interlocução. Um delírio, navegando entre o céu e o centro da terra, com gostoso gosto de mel. Depois de quase terem penetrados no insondável, Um perguntou ao Outro: “tenho agora os sete minutos de sua atenção?” O Outro disse sim apenas com o cintilar dos olhos. Então Um falou:  “para ser grande, sê inteiro. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim como em cada lago, a lua toda brilha, porque alta vive.” Dito isso, arrematou: “menor que meu sonho, não posso ser”, um micro poema de seu amigo poeta. Cravados sete minutos, sem necessidade de conferir o relógio, Um não abriu mais a boca, porque nada mais precisava ser dito. Acenou grato pelo tempo concedido,  e assim foi se despedindo do Outro. Atravessou a rua, procurou o melhor jeito de ficar exposto ao sol e pôs-se a espera.

Ainda com coisas intrincadas mexendo por dentro, o Outro que tentava compreender melhor aquele encontro, viu que não demorou nada para Outra pessoa – agora com duas moedas, uma em cada mão – surgisse e se dirigisse ao Um. A Outra aproximou-se  de Um, e... o mesmo ritual! 

O Outro, repentinamente sobressaltado, abandonou o caminho que deveria ir em frente e deu meia volta. Correu o mais rápido que pode para chegar em casa. Agia como alguém que não poderia perder mais tempo. Vasculhou por todos os cantos até encontrar o “empoeirado” Fernando Pessoa. E logo que pegou o poeta, mergulhou no próprio. Não demorou muito gritou agoniado, como se tivesse em transe: “EU! DEVORANDO POESIA!?”

Pensou que estivesse doente, delirando. Mas não estava não. É que Um tinha engravidado Outro. Pressentindo isso, voltou aos poemas.